Dar cor à esperança

Literatura e resistência para renovar a Academia Brasileira de Letras

Desponta no céu uma estrela. Brilha leve e tranquila. Mulher de olhos sábios, filha de família simples, negra, nascida numa favela, na zona sul de Belo Horizonte. Salve, Conceição Evaristo. Meteoro literário a acolher revelar novas faces para uma literatura mais resistente.

Filha de lavadeira, nascida no dia 29 de novembro de 1946, Conceição Evaristo louva os aprendizados das gerações, transmitidos de mãe para filho. Da voz ecoada baixinho, “no fundo das cozinhas alheias, debaixo das trouxas, roupagens sujas dos brancos empoeirados, rumo às favelas”, nasceu uma menina de potente voz, capaz de ensinar à sua filha como recolher em si “a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora”. Escrevendo a si, Conceição Evaristo é capaz de ressoar uma literatura como “eco da vida liberdade”.

Olhos femininos que pousaram sobre cenas da vida cotidiana brasileira em tempos de desesperanças políticas. Mulher brasileira que esta Feira Literária de Mucugê deseja celebrar. Mulher que sabe de muitas coisas. Sabe das incoerências dos tempos em que vive. Enfrenta com uma coragem singular as amarguras logradas na vida.

E ela, então, escreve. Resistente, escreve com leveza e com sabedoria. Em seus contos, poesias e romances, instrui sem aconselhar, consola sem ferir, harmoniza sem entristecer. Com finura e cordialidade. Mulher aguerrida, corajosa ao publicar histórias em língua portuguesa e inglesa no mesmo momento em que o aumento de traduções e adaptações de prosas de ficções inundam o mercado nacional. Começou a carreira de escritora rompendo o continente, ao publicar um conto em revista estrangeira, nos Estados Unidos, nos Cadernos Negros. Segue, ainda hoje, a contar histórias, encantando a todos que a desejam vê-la ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Uma Mulher assim… Diferente. Um convite a Leitura com um Salve a Conceição Evaristo. Os olhos críticos as olham, hoje, com maior atenção. Mulher que sabe conservar, com sua fama de escritora, a elegância natural da mulher útil e, ao mesmo tempo, aguerridas guerreiras pelos direitos da cidadania.

É por isso que, agora, nós a recordamos, a celebramos e agradecemos.

Diásporas

Primeira infância

Nascida mineira, vinda de uma mulher pouco capaz de mentir, Conceição Evaristo olha com atenção um documento da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Lá, diz assim: Cor. Parda. 

A mulher escreve sobre o que sabe. Conceição Evaristo sabe que, sozinha, a mãe, Joana Josefina Evaristo, a registrou. Em seus contos, muitas outas mulheres – sozinhas – constroem o cotidiano entre luta e resistência.

Pouco sabe sobre seu pai, mas reconhece o amor vindo de Aníbal Vitorino, pedreiro. Irmã de quatro Marias e cinco meninos, Conceição Evaristo conta em Poemas da recordação e outros movimentos como sua mãe chorava mais quando era jovem e cuidava, sozinha, de suas Marias e de Conceição. 

O sol batia sobre as roupas do varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia. (Poemas da Recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008).

Hoje, não mais. A mãezinha vive a velhice tranquila ao lado de Aníbal Vitorino. 

Do velho ao jovem

Na face do velho
As rugas são letras,
Palavras escritas na carne,
Abecedário do viver.

Na face do jovem
O frescor da pele
E o brilho dos olhos são dúvidas
(Poemas da Recordação e outros Movimentos. Belo Horizonte, Nandyala, 2008)

“Meu padrasto Aníbal, quando chegou a nossa casa, minha mãe cuidava de suas quatro filhas sozinha. Maria Inês Evaristo, Maria Angélica Evaristo, Maria da Conceição Evaristo e Maria de Lourdes Evaristo. Bons tempos, o de nós meninas. Minha mãe se constitui, para mim, como algo mais doce de minha infância”. Os sofrimentos da mãe sozinha ecoam em muitos contos de Conceição Evaristo.

Numa família mosaico, Conceição Evaristo considera-se filha de duas mães. Mora, aos sete anos, com a tia Maria Filomena da Silva, lavadeira como a mãe, casada com Antonio João da Silva, pedreiro como o pai, Aníbal. Vivendo numa casa com menores necessidades, cria a oportunidade para ler e estudar.

Linha por linha, palavra por palavra, Conceição Evaristo vence as páginas da leitura e da Vida. Aprende com a tia e com a mãe a arte de cuidar do outro realizando os mesmos serviços domésticos vistos em casa: cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Trabalha como doméstica desde os tenros oito anos de idade.

Menina, aprende a estudar e ensina a fazer o dever – com os irmãos menores e com as demais crianças sob seus cuidados. Trocando serviços de passar, lavar, levar e trazer trouxas de roupas por horas de ensino e livros didáticos (aqueles que descartamos ao final do ano letivo), Conceição Evaristo ganha um trocadinho e acumula uma riqueza em sua alma. A poesia a visitava e ela nem sabia.

Vida escolar

Nascida na favela, Conceição Evaristo ajuntou uns meninos parecidos – dispostos a aprender e necessitados de instrução. Cuida e cria a oportunidade para aprender e ensinar. Com os mais ricos, consegue livros e dinheiro. Experimentou a sobrevivência por meio dos lixos, tal qual Carolina de Jesus, escritora negra brasileira mais expoente. Quarto de Despejo (1958), livro escrito por Carolina de Jesus a respeito das adversidades da vida pobre das favelas, foi lido por sua mãe. 

Foi mãe que me descegou
Para os cantos milagreiros da vida
Apontando-me o fogo disfarçado
Em cinzas e a agulha do
Tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir
As flores amassadas
Debaixo das pedras
Os corpos vazios
Rente às calçadas
E me ensinou,
Insisto, foi ela
A fazer da palavra
Artifício
Arte e ofício
Do meu canto
Da minha fala

(De mãe, “Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008)

Leitora e escritora de si, Joana Josefina Evaristo promoveu o melhor bem-estar a seus filhos, educando-os em uma escola pública distante de casa, mas vista como importante entre os belo horizontinos. Aguerrida, Conceição Evaristo participou dos momentos literários na escola e, ao terminar o primário, ganhou o primeiro prêmio de literatura, com o tema “Por que me orgulho de ser brasileira”, em 1958.

Aprendeu com o tio, Osvaldo Catarino Evaristo – soldado, poeta, desenhista e artista plástico. Participou do movimento da Juventude Operária Católica. Partiu para o Rio de Janeiro, na década de 70 do século passado.

Meu rosário

Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
Padres-nossos e aves-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques do meu povo
E encontro na memória mal adormecida
As rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, em que as rainhas negras, apesar do desejo de coroar a Rainha,
Tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
Lançando flores.

Como um rosário, com uma conta em cima da outra, Conceição Evaristo aprendeu nas escolas e na Vida como meninas negras, com funções mais simples nas casas onde trabalha, devem ser subservientes. Consciente, Conceição Evaristo diferenciou a subserviência da obediência e manteve o treino da leitura e da escrita: exercício constante a destino do improvável.

Vida moça

Naqueles anos, não tínhamos um consenso sobre o que era a favela tal qual a observamos hoje. A população trabalhadora dos serviços mais simples e essenciais numa cidade, grande maioria negra, viveu em movimento. Grandes diásporas e dispersões de uma boa parcela da população era promovida e incentivada pelos governos das cidades brasileiras. Em cidades de maior porte, as pessoas cujas casas eram feitas de papelão, madeira ou com estrutura frágil, sem o título do lote em nome próprio, viveram à mercê das escolhas das secretarias. Ocupavam e saíam dos espaços, em grandes movimentos de mudanças e transição de lugares para morar sempre para locais mais distantes do centro da cidade.

Sendo professora, Conceição Evaristo era subalterna para aquelas famílias que a podem indicar para ocupar uma função com a profissão adquirida por mérito: professora. Relembra em suas poesias ter nascido a literatura em sua alma “nos fundos das cozinhas alheiras”. Colhe palavras nas casas dos escritores onde a família trabalhou. Narra o que vê para pessoas semi-alfabetizadas.

Da Calma ao Silêncio

Quando eu morder
A palavra,
Por favor,
Não me apressem,
Quero mascar,
Rasgar entre os dentes,
A pele, os ossos, o tutano,
Do verbo,
Para assim versejar
O âmago das coisas.

(Poemas da recordação e outros movimentos. Bolo Horizonte: Nandyala, 2008).

Leu pouco? Não. Leu revistas, livros velhos, jornais. Escreveu bilhetes, anotações familiares, orações. Ganhou uma biblioteca inteira: a pública. Fez serões de leituras com a família. Ouvindo a leitura da família, inverteu os papéis. Começa, também, a ler para os outros.

 

Texto de Clara Carolina Santos


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